Nicolau Maquiavel, retrato por Santi de Tito |
Príncipes com orelhas de burro
Mário Soares promoveu uma frente populista cujo objetivo foi desde início derrubar o governo de coligação existente, a pretexto da instabilidade que a própria fronda soarista se encarregou de promover ou intensificar com a ajuda preciosa do PCP e dos sindicatos 'comunistas' e 'socialistas'.
Perante esta ofensiva, o rapaz que substituiu José Sócrates na chefia do PS, António José Seguro, foi obviamente entalado, tendo-se agarrado a uma tábua de salvação retórica: a ladainha das eleições antecipadas, invocando que o atual governo cumpriu pessimamente os termos do Memorando (o que é verdade), hostilizou desde o primeiro minuto o líder da Oposição e o PS (o que é verdade) e lançou o país numa espiral recessiva e de empobrecimento galopante (o que também é verdade).
Contudo, aquilo que menos interessa ao PS é uma antecipação das eleições legislativas enquanto não ficar completamente claro entre os eleitores que o PSD e o CDS continuarão a liquidar o país se não forem corridos do governo na primeira oportunidade, mas na primeira oportunidade própria de um regime plenamente democrático, e não através de golpes. Ou seja, derrubar este governo legítimo por meios golpistas, ainda que legais, nomeadamente através de uma pressão tremenda sobre o presidente da república, jogaria sempre contra a aproximação do PS de uma possível nova maioria absoluta. Por outro lado, as próximas eleições autárquicas e europeias serão excelentes ocasiões para António José Seguro construir a sua futura maioria com tempo, consolidando a liderança, atraindo dirigentes e personalidades sem filiação partidária, e aprendendo até lá o muito que lhe falta aprender para ser um verdadeiro líder e possível primeiro ministro.
Cavaco Silva conhece perfeitamente a situação em que se encontra o líder do PS, e sabe que José Sócrates veio de Paris para retomar o poder dentro do PS e afastar Seguro do sítio onde está, em nome do muito que está em causa nas tríades de que o senhor Pinto de Sousa é a testa de ferro.
Paulo Portas, por sua vez, sabe que o CDS/PP recairá no partido-táxi se nada fizer até às Autárquicas, primeiro momento da sua previsível derrocada. Daí ter aproveitado a demissão e a carta armadilhada de Vítor Gaspar a Passos Coelho, sob o pretexto de não gostar da nova ministra das finanças, para se demitir irrevogavelmente, no que interpreto como tendo sido o mais ousado bluff que a política portuguesa conheceu nas últimas décadas. Através deste bluff, que Passos de Coelho aceitou inexplicavelmente, certamente mandado pelas máfias e tríades do costume, e que são as mesmas que mandam em José Sócrates, o CDS/PP tomaria de assalto o lombo do governo, e a partir desta conquista reconfiguraria toda a direita portuguesa. Se a operação não tivesse sido abortada por Cavaco Silva, em breve veríamos Paulo Portas despachar o pobre Passos de Coelho, como outrora despachou aquela ave rara chamada Manuel Monteiro, depois de o seduzir, claro.
Se o bluff de Portas não tivesse sido desmascarado pelo cold call de Cavaco, não só o PSD entraria imediatamente em convulsão interna, mas também o próprio PS seria atingido pelo início do que mais cedo ou mais tarde acabará por ocorrer no sistema partidário português, isto é, uma reconfiguração profunda do mesmo, com o provável aparecimento de uma ou duas novas forças partidárias credíveis com vocação parlamentar e de governo. Seguro tem pois boas razões para agradecer ao presidente da república a sua sobrevivência próxima.
Entretanto, Cavaco Silva deu cabo da coligação governamental de um modo verdadeiramente digno de Maquiavel (1). Condenou-a a uma morte súbita depois de cumprido o prazo do memorando e de a Troika sair do país, em nome da exigência das eleições antecipadas insistentemente pedidas pelo PS, libertando assim António José Seguro para outras retóricas mais construtivas.
Ao mesmo tempo, e aqui está o requinte, Cavaco Silva obriga o governo PSD-CDS/PP a seguir em funções tal como está, numa espécie de governo de gestão balizado pelo refrescamento do compromisso existente entre os três partidos que assinaram o memorando da Troika. Assim como o PSD e o CDS subscreveram, a pedido do PS, e em nome do interesse nacional, o Memorando dos credores, seria incompreensível que o PS agora não aceitasse assinar um reforço do mesmo compromisso em nome da verdadeira emergência financeira, económica e social em que o país se encontra dois anos depois de uma governação que nada fez para atacar os grandes chulos enquistados no regime.
Obviamente que o PS, para aceitar reforçar o compromisso do Memorando, imporá condições. E Cavaco Silva cá estará para o apoiar nas negociações com o PSD e com o CDS/PP!
O cenário previsto pelo inesperado Maquiavel de Belém começa, pois, a ficar claro: Seguro à frente do PS, Passos de Coelho corrido após as três derrotas eleitorais sucessivas que o esperam, idem para a liderança do CDS/PP.
Ou seja, o presidente da república, sem sair do seu condicionalismo institucional, iniciou verdadeiramente um programa de preparação do primeiro governo pós-Troika.
Que governo será esse? Um de três: governo maioritário do PS; governo de coligação com um CDS/PP sem Portas; novo governo de Bloco Central; ou ainda uma coligação do PS com nova força partidária. Em todo o caso, porém, Cavaco Silva crê e apoia desde já o regresso do PS à liderança governativa, desde que António José Seguro mantenha devidamente acantonadas as tropas de José Sócrates.
Por fim, se Passos de Coelho ou Portas inviabilizarem o compromisso de salvação nacional exigido pelo presidente da república, então terão que demitir-se. E aí, Cavaco Silva poderá chamar de novo o PSD a formar governo, mas já com Passos fora do caminho. Portas, num cenário destes, não resistiria aos poucos que no CDS/PP têm os neurónios a funcionar e não temem o fraco chefe.
Conclusão
A coligação fez uma proposta inaceitável a Cavaco, e Cavaco respondeu à provocação com uma proposta simetricamente inaceitável. Logo, o governo não será remodelado e continuará a arrastar-se até às Autárquicas, após as quais Passos Coelho e Portas morrerão como lideres partidários. Ou então, perante a recusa presidencial de remodelar uma coligação cujos partidos se recusam a celebrar um compromisso de salvação nacional nos termos propostos por Belém, Passos Coelho acaba por pedir a demissão, e o PR convoca então o PSD a apresentar uma alternativa para a chefia do governo e subsequente remodelação. Portas tentará sobreviver ao naufrágio.
PS: algumas almas ofendidas acusam Cavaco Silva de não convidar o PCP, nem o Bloco, para a formação do compromisso de salvação nacional. A acusação é hipócrita pelas seguintes razões:
- comunistas, estalinistas e trotsquistas recusaram desde sempre qualquer relacionamento com a Troika de credores;
- o PCP e o BE mantiveram desde o início do programa de intervenção externa uma postura de afrontamento permanente contra a Troika;
- e, por fim, Louçã, Jerónimo, Catarina e Semedo (a par de alguns sindicalistas e da fronda Soarista) têm estimulado grupos de arruaceiros organizados à prática contínua de ofensas ilegais à integridade institucional da Assembleia da República e do governo, até ao ponto de promoverem ações sistemáticas de acosso pessoal junto de governantes e do próprio presidente da república.
António Cerveira Pinto
NOTAS
- Cavaco Silva, do discurso de 10 de julho:
“Primeiro, o acordo terá de estabelecer o calendário mais adequado para a realização de eleições antecipadas. A abertura do processo conducente à realização de eleições deve coincidir com o final do Programa de Assistência Financeira, em j unho do próximo ano.
Em segundo lugar, o compromisso de salvação nacional deve envolver os três partidos que subscreveram o Memorando de Entendimento , garantindo o apoio à tomada das medidas necessárias para que Portugal possa regressar aos mercados logo no início de 2014 e para que se complete com sucesso o Programa de Ajustamento a que nos compromete mos perante os nossos credores.
A posição negocial de Portugal sairia reforçada, evitando novos e mais duros sacrifícios aos Portugueses.
Em terceiro lugar, deverá tratar-se de um acordo de médio prazo, que assegure, desde já, que o Governo que resulte das próximas eleições poderá contar com um compromisso entre os três partidos que assegure a governabilidade do País, a sustentabilidade da dívida pública, o controlo das contas externas, a melhoria da competitividade da nossa economia e a criação de emprego.
É essencial afastarmos do horizonte o risco de regresso a uma situação como aquela que atualmente vivemos.”
Comunicação ao País do Presidente da República
Palácio de Belém, 10 de julho de 2013
Discurso completo.
Última atualização: 15/7/2013 00:47
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