segunda-feira, 26 de março de 2012

Recapitular Saint-Simon

Saint-Simon por Carla Carbone

Cartas de um habitante de Genebra aos seus contemporâneos


por CLAUDE-HENRI SAINT-SIMON

Já não sou novo, observei e reflecti activamente toda a minha vida, e a vossa felicidade foi o objectivo para o qual todo o meu trabalho se dirigiu; pensei num projecto que vos poderá ser útil e proponho-me agora falar-vos acerca dele.

Abram uma subscrição em honra da memória de Newton: permitam a toda a gente, quem quer que seja, subscrevê-la na quantia que desejar.

Deixem cada subscritor nomear três matemáticos, três físicos, três químicos, três fisiologistas, três escritores, três pintores e três músicos.

As subscrições e nomeações deverão ser renovadas anualmente, embora qualquer pessoa deva estar completamente à-vontade para voltar nomear as mesmas pessoas indefinidamente.

Dividam o total das subscrições entre os três matemáticos, os três fisiologistas, etc., que tiverem obtido o maior número de votos.

Convidem o presidente da Sociedade Real de Londres para receber no primeiro ano, as subscrições. Nos anos subsequentes, confiem este honroso encargo a quem quer tenha feito a maior subscrição.

Estipulem como condição que aqueles que tiverem sido nomeados não possam aceitar postos, honras ou dinheiro de nenhum grupo particular, mas tenham total liberdade para usar as dádivas recebidas como desejarem.

Homens de génio irão desta forma usufruir de uma recompensa que é digna deles mesmos e de vós; esta recompensa será a única que lhes fornecerá os meios para vos dar a todos o serviço de que são capazes; tornar-se-á o objecto da ambição das mentes mais activas e desviá-las-á de tudo o que possa perturbar a vossa paz de espírito.

Finalmente, ao fazerem isto estarão a providenciar os líderes daqueles que estão a trabalhar para o progresso da vossa ilustração; estarão a atribuir a tais líderes um grande prestígio, e estarão a colocar recursos financeiros consideráveis à sua disposição.

Dediquei este projecto directamente à humanidade, porque é do seu interesse colectivo; mas não sou ingénuo ao ponto de esperar que a humanidade o vá por de imediato em prática. Sempre pensei que o seu êxito dependeria do apoio que os mais influentes decidissem conceder-lhe. A melhor forma de ganhar os seus votos é explicar-lhes este tema tão completamente quanto possível. É o que pretendo fazer ao dirigir-me aos diferentes sectores da humanidade, que dividi em três classes. A primeira, à qual eu e vocês temos a honra de pertencer, marcha sob o estandarte do progresso da mente humana. É formada por cientistas, artistas e todos aqueles que defendem ideias liberais. No estandarte da segunda está escrito ‘Não à inovação!’. Todos os proprietários que não pertencem à primeira categoria fazem parte da segunda.

A terceira classe, que se agrupa sob o mote da ‘igualdade’ é constituída pelo resto da população.

Diria à primeira classe: todos a quem falei do projecto que estou a apresentar à humanidade, têm-no finalmente aprovado após uma pequena discussão. Todos lhe desejaram boa sorte, mas também me fizeram ver que temiam pelo seu êxito.

Esta conformidade geral faz-me pensar que provavelmente toda as pessoas, ou pelo menos quase todas partilham da mesma opinião. Se este pressentimento for correcto, a força da inércia será o único obstáculo à adopção dos meus pontos de vista.

Vocês, cientistas e artistas, e aqueles que entre vós dedicam alguma da própria energia e meios ao avanço do conhecimento, vocês são o sector da humanidade com a maior força intelectual; vocês possuem o maior talento para captar novas ideias. Vocês são os principais interessados no sucesso da subscrição. Cabe-vos a vocês superar a força da inércia. Deixem aos matemáticos, dado que eles encabeçam a lista, a tarefa de começar!

Cientistas, artistas, olhem com olhos de génio o presente estado da mente humana; verão que o ceptro da opinião pública caiu nas vossas mãos; agarrem-no com vigor! Podem criar felicidade para vocês e para os vossos contemporâneos; podem proteger a posteridade —dos males de que sofremos e daqueles que ainda perduram; todos vocês, subscrevam!

Aos membros da segunda classe, eu dirigiria as seguintes palavras:

Cavalheiros,

Comparados com aqueles que não possuem qualquer propriedade, vocês não são muitos em número: como é então possível que eles consintam em obedecer-vos? É porque a superioridade do vosso intelecto permite combinar as vossas forças (de forma que eles não conseguem), dando-vos a capacidade de ganhar por larga margem uma vantagem sobre eles numa luta que, na natureza das coisas, sempre existirá entre vós e eles.

Logo que este princípio tenha sido aceite, é claramente do vosso interesse incluir nas vossas fileiras aqueles que não têm propriedade; aqueles que provaram a superioridade da sua inteligência com descobertas importantes; e é igualmente claro que sendo geral o interesse para a vossa classe, cada um dos membros que o constitui deveria contribuir.

Cavalheiros, gastei muito do meu tempo entre cientistas e artistas; observei-os de perto e posso assegurar-vos de que eles irão pressionar-vos até que vocês decidam sacrificar o vosso orgulho e o dinheiro necessário para colocar os seus líderes nas posições de maior respeito, provendo-os com os meios financeiros necessários à exploração plena das suas ideias. Seria culpado de exagero, cavalheiros, se vos permitisse acreditar que encontrei esta intenção totalmente formada nas mentes dos cientistas e artistas. Não! Cavalheiros, não! Posso apenas dizer que tal intenção existe numa forma vaga; mas estou convencido, por uma longa série de observações, da existência de tal intenção e da influência que ela pode exercer nas ideias dos cientistas e artistas.

Até adoptarem a medida que vos proponho, estareis expostos, cada um no seu país, ao género de males que alguns da vossa classe sofreram em França. Para convencer-vos do que vos digo, apenas tereis que recordar os acontecimentos que ocorreram naquele país desde 1789. Ali, o primeiro movimento popular foi secretamente fomentado por cientistas e artistas. Assim que o sucesso da insurreição lhes deu a aparência de legitimidade, declararam-se os seus líderes. A resistência que eles encontraram à orientação dada às insurreições visando a destruição de todas as instituições que tinham ferido a sua auto-estima – incitou-os a inflamar as paixões dos ignorantes e a romper todos os laços de subordinação que, até ali, tinham contido as volúveis paixões daqueles que não possuíam propriedade. Eles tiveram êxito em conseguir o que queriam. Todas as instituições que desde o início procuraram destituir foram inevitavelmente destruídas; resumidamente, eles ganharam a batalha e vocês perderam-na. Esta vitória custou muito aos vencedores; mas vocês foram vencidos e sofreram ainda mais. Alguns cientistas e artistas, vítimas da insubordinação do seu exército, foram massacrados pelas suas próprias tropas. Do ponto de vista moral, todos eles tiveram que sofrer as vossas aparentemente justificáveis repreensões, pois foram responsáveis pelas atrocidades contra vós cometidas e por todo o tipo de desacatos que as suas tropas foram levadas a cometer sob o bárbaro impulso da ignorância.

Logo que a maldade chegara ao seu auge, a cura apareceu; não oferecestes mais resistência. Os cientistas e artistas, tendo aprendido pela experiência, e reconhecendo que vós éreis mais esclarecidos que os que não tinham propriedade, pediram que vos fosse devolvido o poder suficiente para restaurar o funcionamento regular da organização social. Os destituídos de propriedade sofreram quase toda a fome causada pelas suas próprias medidas imprudentes. Foram subjugados.

Embora a força das circunstâncias tenha conduzido o povo de França ao ardente desejo de restauração da ordem, eles apenas poderiam reorganizar-se como sociedade através de um homem de génio. Bonaparte assumiu este papel e conseguiu lográ-lo.

De entre as ideias que vos apresentei está a insinuação de que haveis perdido a batalha. Se vos resta alguma dúvida acerca deste assunto, comparem o grau de prestígio e conforto de que gozam actualmente em França os cientistas e artistas, com o estatuto que tinham antes de 1789.

Cavalheiros, não entreis em discussão com eles, pois sereis batidos em cada batalha em que vos deixardes enredar por eles. Sofrereis mais do que eles durante as hostilidades, e a paz não vos será vantajosa. Permitam-se fazer qualquer coisa de livre vontade, pois mais cedo ou mais tarde, os cientistas e artistas, homens de ideias liberais, em conjunto com os que não têm propriedade, obrigar-vos-ão a fazê-lo pela força: subscrevam-se a um homem – é para vós a única forma possível de evitar os males que vos ameaçam.

Já que esta questão foi levantada, sejamos suficientemente corajosos para não a abandonarmos sem olharmos, ainda que de relance, para a situação política na mais esclarecida parte do mundo. 

Neste momento na Europa, as acções dos governos não são perturbadas por nenhuma oposição aberta por parte dos governados; mas dado o clima da opinião pública na Inglaterra, Alemanha e Itália, é fácil prever que esta calma não será duradoura, a não ser que as precauções necessárias sejam tomadas a tempo: porque, cavalheiros, é-vos impossível esconder de vós mesmos que a crise que a mente humana enfrenta é comum a todas as gentes iluminadas, e que os sintomas que apareceram em França, durante a terrível explosão que ali ocorreu, podem ser detectados no momento presente por um observador inteligente em Inglaterra, e mesmo na Alemanha.

Cavalheiros, adoptando o projecto que vos estou a propor, estareis a limitar as crises que estes povos estão destinados a sofrer —e que nenhum poder na terra pode impedir— a simples mudanças nos seus governos e finanças, poupando-lhes a sublevação geral a que o povo francês foi submetido e em consequência da qual todos os laços entre os membros de uma nação se tornaram precários; poupando-lhes a anarquia, a maior de todas as punições, cuja fúria incontrolada precipita a nação por inteiro num abismo de miséria, que por fim dá lugar, mesmo entre os mais ignorantes dos seus membros, a um desejo de restauração da ordem.

Poderia aparentar que subestimo a vossa inteligência, cavalheiros, se adicionasse mais provas para além daquelas que acabei agora mesmo de vos submeter, para vos provar de que é do vosso próprio interesse adoptar esta medida que vos proponho, à luz de todos os males de que a mesma vos pode salvar.

É com prazer que vos apresento agora o projecto a uma luz lisonjeira para a vossa auto-estima. Pensai em vós como os reguladores do progresso da mente humana; podeis protagonizar este papel; porque se, através da subscrição, concederdes prestígio e conforto a homens de génio, uma das condições da subscrição é que aqueles que forem eleitos estarão impedidos de ocupar qualquer posto governamental, salvaguardando-vos assim, e ao resto da humanidade, das desvantagens de colocar poder efectivo nas suas mãos.

A experiência mostra que no momento da concepção das novas, poderosas e justas ideias de que são feitas as descobertas, se encontra geralmente uma mistura de elementos nocivos. Mesmo assim, se o seu inventor tivesse poder para tal, insistiria para que fossem postas em prática. Este é o exemplo de uma desvantagem particular. Mas eu chamar-vos-ia a atenção para outra de natureza geral. Sempre que uma descoberta que requer uma mudança de hábitos e costumes existentes está para ser posta em prática, a geração que testemunhou o seu nascimento apenas pode desfrutá-la através do que sente pelas futuras gerações destinadas a aproveitá-la.

Concluo este pequeno discurso com que me aventurei dirigir-vos dizendo:

Cavalheiros, se permanecerdes na segunda classe, é porque assim o desejais, pois está ao vosso alcance subir até à primeira classe. Debrucemo-nos agora sobre a terceira classe:

Meus amigos,

Há muitos cientistas em Inglaterra. Senhores ingleses educados têm mais respeito por cientistas do que têm por reis. Toda a gente sabe ler, escrever e contar em Inglaterra. Bem, meus amigos, naquele país os trabalhadores das cidades e mesmo os do campo comem carne todos os dias.

Na Rússia, se um cientista desagrada ao imperador são-lhe cortados o nariz e as orelhas e ele é enviado para a Sibéria. Na Rússia os camponeses são tão ignorantes como os seus cavalos. Bem, meus amigos, os camponeses russos são mal alimentados, mal vestidos e são frequentemente espancados.

Até agora, a única ocupação dos ricos tem sido darem-vos ordens; obriguem-nos a ilustrar-se e a ensinar-vos; fazem-vos trabalhar para eles com as vossas mãos —façam as mãos deles trabalharem para vocês; façam-lhes o favor de os livrar do fardo do tédio; eles pagam-vos com dinheiro; paguem-lhes com respeito: é uma moeda bem mais preciosa; felizmente, mesmo os mais pobres possuem algum; gastem o que têm sensatamente e o vosso quinhão rapidamente aumentará.

Para possibilitar que vocês julguem o conselho que vos estou a dar, e para estimarem as vantagens que se poderão seguir à execução do meu projecto para a humanidade, tenho de entrar em alguns detalhes, mas restringir-me-ei ao que é essencial.

Um cientista, meus amigos, é um homem que antecipa; é porque a ciência providencia os meios para prever que é útil, e por isso os cientistas são superiores a todos os outros homens.

Todos os fenómenos que conhecemos foram divididos em diferentes categorias: astronómica, física, química e fisiológica. Qualquer cientista se dedica mais especialmente a uma destas categorias do que às restantes.

Vocês conhecem algumas das previsões feitas por astrónomos: sabem que eles prevêem eclipses; mas eles também fazem uma série de outras previsões às quais vocês não prestam muita importância e com as quais eu não vos aborrecerei. Limitar-me-ei a  dizer algumas palavras acerca do uso que delas são feitas, e cujo valor é de vocês bem conhecido.

É por meio das previsões de astrónomos que tem sido possível determinar com exactidão a posição relativa de diferentes pontos da Terra; as previsões deles tornam também possível navegar pelos oceanos mais distantes. Vocês conhecem bem algumas das previsões dos químicos. Um químico diz-vos que com esta pedra vocês podem fazer cal e com esta outra não; ele diz-vos que com uma tal quantidade de cinzas de uma árvore em particular vocês podem branquear linho tão bem como com uma quantidade muito maior de outro tipo de árvore; ele diz-vos que uma tal substância misturada com outra produzirá um produto com tal e qual aparência, manifestando certas propriedades.

O fisiologista dedica-se aos fenómenos dos corpos orgânicos; por exemplo, se estiverem doentes, ele dirá “Você sente hoje este sintoma; bem, amanhã estará nesta condição”.

Não se vão embora com a ideia de que eu quero que vocês acreditem que os cientistas conseguem prever tudo; claro que não conseguem. E tenho mesmo a certeza de que eles conseguem prever com precisão apenas um número muito pequeno de coisas. Mas vocês estão convencidos, tal como eu, que os cientistas são homens que conseguem prever a maior parte dos fenómenos na sua área. E isto, claro, é porque eles só adquirem a reputação de serem cientistas pelas verificações que são feitas das suas previsões; pelo menos assim é hoje em dia, sendo que no entanto nem sempre foi assim. Isto significa que temos de olhar para o progresso feito pela mente humana; não obstante os meus esforços para me expressar claramente, não tenho a certeza absoluta de que me irão entender numa primeira leitura, mas se pensarem no assunto um bocadinho, acabarão por consegui-lo no fim. 

Os primeiros fenómenos que o homem observou sistematicamente foram astronómicos. Houve boas razões para isso, já que eram os mais simples. No começo da investigação astronómica, os homens confundiram os factos que eles observaram com aqueles que eles imaginavam, e nesta miscelânea primitiva eles fizeram as melhores combinações que conseguiram de forma a satisfazer todos os requisitos das suas previsões. Gradualmente eles desembaraçaram-se dos factos criados pela sua imaginação e, depois de muito trabalho, adoptaram finalmente um método certeiro de aperfeiçoar esta ciência. Os astrónomos aceitaram apenas aqueles factos que pudessem ser verificados pela observação; eles escolheram o sistema que melhor os articulava, e desde esse tempo, nunca mais deixaram a ciência ao acaso. Se um novo sistema é criado, eles verificam antes de o aceitarem se ele articula os factos melhor do que o previamente adoptado. Se um novo facto é produzido, eles verificam por observação, que ele existe.

O período do qual falo, o mais memorável na história do progresso humano, é aquele no qual os astrónomos afastaram os astrólogos. Outra observação que devo fazer é que desde então os astrónomos tornaram-se pessoas modestas e inofensivas, que não pretendem saber coisas acerca das quais são ignorantes. Vocês, pela vossa parte, deixaram de lhes perguntar de forma presumida para lerem o vosso futuro nas estrelas.

Os fenómenos químicos são de longe mais complicados do que os astronómicos, por isso os homens só os começaram a estudar muito mais tarde. No estudo da química, foram feitos os mesmos erros que no estudo da astronomia, mas com o tempo os químicos livraram-se dos alquimistas.

Também a fisiologia está ainda no mau estado que as ciências astronómica e química já ultrapassaram; os fisiologistas têm que expulsar os filósofos, moralistas e metafísicos do seu seio, tal qual os astrónomos expulsaram os astrólogos, e os químicos os alquimistas.

Meus amigos, nós somos corpos orgânicos; ao vislumbrar as nossas relações sociais como fenómenos fisiológicos concebi o plano que vos apresento, e é com argumentos retirados do sistema que eu usei para coordenar factos fisiológicos que eu vos irei demonstrar o mérito deste plano.

É um facto, confirmado por uma longa série de observações, que todo o homem sente, até certo ponto, o desejo de dominar os outros. O que é claro, de acordo com uma argumentação razoável, é que todo o homem que não está isolado é ao mesmo tempo activa e passivamente dominante na sua relação com outros, e eu exorto-vos a usar essa pequena porção de domínio que vocês exercem, sobre os ricos... Mas antes de ir mais longe, tenho de discutir com vocês algo que vos enfurece profundamente. Vocês dizem: nós somos dez, vinte, cem vezes mais numerosos que os proprietários e no entanto eles exercem um poder sobre nós muito maior do que aquele que nós detemos sobre eles. Consigo entender, meus amigos, porque estão ressentidos. Mas reparem que os proprietários, apesar de em menor número, são mais esclarecidos do que vocês, e que para o bem comum o poder deverá ser distribuído de acordo com o grau de esclarecimento. Vejam o que aconteceu em França durante o período em que os vossos camaradas estiveram no poder. Eles trouxeram a fome.

Vamos regressar agora ao meu plano. Ao adoptá-lo e pô-lo em prática, irão confiar permanentemente aos vinte e um homens mais iluminados da humanidade, os dois maiores instrumentos de poder: prestígio e riqueza. O resultado será que, por muitas razões, as ciências farão rápidos avanços. É bem sabido que o estudo das ciências se torna mais fácil com cada avanço feito, sendo que aqueles que, como vocês, podem dedicar algum tempo à respectiva educação, aprendem mais, e à medida que aprendem mais, diminuem a proporção de poder exercido sobre eles pelos ricos. Não levará muito, meus amigos, para verem os benefícios resultantes. Mas não quero gastar o vosso tempo a falar das consequências remotas de uma direcção que ainda não decidiram tomar. Falemos pois do que vocês podem ver com os vossos olhos neste preciso momento.

Vocês prestam o vosso respeito, quero dizer, oferecem voluntariamente uma dose do vosso poder a homens que, do vosso ponto de vista, fazem coisas que consideram úteis. O vosso engano, que partilham com o resto da humanidade, é que vocês não fazem uma distinção suficientemente clara entre benefícios temporários e duradoiros; entre benefícios de interesse local e aqueles de interesse universal; entre coisas que beneficiam uma parte da humanidade à custa do resto, e aquelas que aumentam a felicidade de toda a humanidade. Resumidamente, vocês ainda não se aperceberam que existe apenas um único interesse comum a toda a humanidade: o do progresso das ciências.

Se o presidente da vossa câmara municipal obtém uma concessão das povoações vizinhas, vocês ficam contentes com ele, vocês respeitam-no; os habitantes das cidades demonstram esse mesmo desejo de exercerem a sua superioridade sobre as cidades vizinhas. As províncias competem entre si, e há lutas de interesse pessoal entre nações a que chamamos guerras. De entre os esforços feitos por todas estas facções da humanidade haverá algum dirigido ao bem comum? É um esforço realmente pequeno —o que não é surpreendente, considerando que a humanidade ainda não deu qualquer passo no sentido de acordar colectivamente uma forma de recompensar aqueles que têm êxito ao fazer algo pelo bem comum. Não creio que possa ser encontrado um melhor método do que aquele que proponho para unir o mais possível todas aquelas forças que actuam em direcções tão diversas e muitas vezes contrárias; para as conduzir o mais possível na única direcção que aponta para o aperfeiçoamento da humanidade. Por agora, chega de falar dos cientistas. Falemos então dos artistas.

Aos Domingos, vocês encontram deleite na eloquência, vocês sentem prazer ao ler um livro bem escrito, ao ver lindos quadros ou estátuas, ou ao ouvir música que vos deixa extasiados. É necessário trabalho duro antes que um homem possa falar ou escrever de maneira que vos possa divertir, ou que possa pintar um quadro ou esculpir uma estátua que vos agrade, ou que possa compor música que vos emocione. Não é justo, meus amigos, poder recompensar os artistas que preenchem as pausas do vosso trabalho com prazeres que engrandecem as vossas mentes ao tocarem nas mais delicadas subtilezas dos vossos sentimentos?

Subscrevam meus amigos! Não interessa o quão pouco dinheiro vocês possam subscrever, há tantos de vocês que a soma total será considerável; para além disso, o prestígio investido naqueles que vocês nomearem conceder-lhes-á forças incalculáveis. Verão como os ricos se apressarão a distinguirem-se nas ciências e nas artes, logo que se aperceberem que esta estrada conduz às honras mais altas. Mesmo que apenas consigam desviá-los das querelas nascidas da sua preguiça sobre quantos de vocês deveriam estar sob o seu comando —querelas nas quais vocês estão sempre embrulhados e pelas quais são sempre prejudicados—, terão ganho muito.

Se aceitarem o meu plano, vocês encontrarão uma dificuldade que é a da escolha: Direi como me deverei preparar para fazer a minha. Perguntarei a todos os matemáticos que conheço, quem são, na opinião deles, os três melhores matemáticos, e deverei nomear os três que reunirem mais votos daqueles a quem consultei. Depois deverei fazer o mesmo para os fisiologistas, etc.

Tendo dividido a humanidade em três partes, e tendo apresentado a cada uma delas as razões pelas quais pensei que deveriam adoptar o plano, dirigir-me-ei agora aos meus contemporâneos colectivamente e exporei perante eles as minhas reflexões acerca da revolução francesa.

A abolição do privilégio de nascimento requereu um esforço que rompeu os laços do antigo sistema social e não representou um obstáculo à reorganização da sociedade. Mas o apelo que foi feito a todos os membros das sociedade para desempenharem os seus deveres de deliberação regularmente não teve sucesso. Para além das terríveis atrocidades que resultaram da aplicação deste princípio de igualdade, como resultado de pôr o poder nas mãos dos ignorantes, também resultou na criação de uma forma de governo totalmente impraticável, porque os governantes, que foram todos pagos de forma a que os destituídos de propriedade fossem incluídos, eram tão numerosos que os trabalhos dos governados eram pouco mais que suficientes para os sustentar. Isto conduziu a uma situação absolutamente contrária àquilo que os destituídos de terra sempre quiseram, que era pagar menos impostos.

Aqui está uma ideia que parece justa. As necessidades básicas da vida são as mais urgentes. Os destituídos de terra apenas as podem suprir parcialmente. O fisiologista consegue ver claramente que o seu mais constante desejo tem que ser a redução de impostos, ou um aumento de salários, o que acaba por ser a mesma coisa.

Penso que todas as classes da sociedade seriam felizes na seguinte situação: poder espiritual, nas mãos dos cientistas; poder temporal, nas dos proprietários; poder para nomear aqueles chamados a desempenhar as funções de grandes líderes da humanidade, nas mãos de todos; e a recompensa para aqueles que governam, a estima.


NOTA — Esta tradução foi realizada a partir do original em inglês Letters from an Inhabitant of Geneva to His Contemporaries, (1803). The Political Thought of Saint-Simon, Oxford University Press, 1976. 'Letters', omiting hypothetical 'Reply'.

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